segunda-feira, outubro 23, 2006

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Quando o sol começa a baixar, começam todos a vir aqui para fora. A maior parte deles não sabe que horas são, mas parece que sentem quando os vêem buscar. Agora no Inverno chegam cada vez mais cedo, e começam a ficar inquietos por ninguém aparecer e já ser tão escuro.
A mim ninguém me vem buscar. Já não tenho ninguém.
Vivi com a minha irmã Marquinhas oitenta e três anos. Nunca casei por isso não tenho filhos, mas nunca senti falta. Estive muito tempo de luto, sabe. E naquela altura o luto era uma coisa muito pesada.
O meu pai morreu éramos ainda jovens e ficámos cinco anos de luto. Depois morreu a minha mãe e quando estávamos para ficar mais cinco anos, morreram-nos cinco tios na Venezuela.
Ao todo, foram 17 anos de luto. Eu e a a Mariquinhas.
Lembro-me dos meus tios da terra nos tentarem convencer a tirar o luto, que o que era demais era bastante, mas nós já não conseguíamos.
Um dia, uma vizinha comprou-nos umas saias assim castanhitas e umas camisas brancas com um bordadinho na gola. Eram bem lindas! Eu e a Mariquinhas ficámos três horas em frente ao espelho sem conseguir olhar para nós. Tínhamos tanta vergonha que parecia que estávamos despidas. Credo, íamos lá agora nesses propósitos para a igreja! Deus nos livre!
Primeiro começámos a deixar o véu em casa. E depois foi assim a pouco e pouco, mas sempre com muita vergonha.
Quando deixámos o luto, já éramos mulheres e depois era um disparate ir aos bailes e às festas. Quanto mais casar! Nunca tive um namorado. Nem a Mariquinhas.
Dávamo-nos muito bem! Era um gosto que a mãezinha tinha, eram aquelas filhas que se davam tão bem.
Quando eu queria comprar alguma coisa perguntava sempre E tu que dizes, Mariquinhas? e ela respondia sempre Tu é que sabes Preciosa, o que está bem para ti, está bem para mim. Mas eu gostava sempre de saber que ela gostava das mesmas coisas que eu.
A minha vida foi muito sofrida, sabe menina. Chorei muito. Por isso é que eu agora tenho cataratas. E este último desgosto só não me levou porque ainda tenho que fazer nesta vida. Só resto eu para levar as flores aos meus mortos.
Sabe o que me custa, menina? Não é ser velha, não! Não é estar quase cega, que isso a mim nem me doi. O que me custa é que quando eu morrer não tenho quem me troque as flores do enterro. E não é a coisa mais triste de se ver, uma campa sem flores?

6 comentários:

guga2004 disse...

De partir o coração.

bjs Sandra

Lipa disse...

Esta história arrepiou-me, mas é engraçado como no fundo vês a vontade de viver destas pessoas... a sua força...
É triste imaginar-mos que podemos vir a sentir o mesmo..

Beijinho

Ana Elias disse...

Este texto é teu, Mia?

Mia disse...

Guga,
:)

Lipa,
É do que eu tenho mais medo...

Lótus,
É pois! Quer dizer, agora é nosso! :)

Rosa disse...

Muito bem "sentido" e muito bem escrito :)

Ana Elias disse...

Então se é teu: "Ai 'melher' que estou tão orgulhosa de ti!
Benza-te Deus!"

Muito bem. Muito bem mesmo!
Bj