quarta-feira, setembro 19, 2007

Não me consigo decidir. Não sei se O mande à merda ou se Lhe agradeça. Primeiro pedi para que não ma levasse. Depois supliquei para que a levasse o mais depressa possível. E Ele levou-a. Pelo menos foi o que disse o Diácono. O Diácono chamava-a de Maria e eu quase que interrompi a cerimónia para o corrigir "Senhor Diácono, desculpe mas Maria era a minha avó. A minha mãe é Maria da Conceição. Ou então, se preferir, só Conceição. Não me leve a mal, não, mas já me parece tão pouco real que ela tenha morrido, quanto mais chamarem-na Maria. Parece o funeral de outra pessoa." Apetecia-me dizer-lhe outras coisas, mas acho que as pessoas iam ficar ofendidas.
As pessoas ofendem-se muito. Tinha vindo de Lisboa numa correria, de tal forma que começava a suspeitar da minha sanidade mental. Se calhar estava a precipitar-me, toda a gente me dizia que não era preciso, que era tarde para me por à estrada, que não me preocupasse porque estava tudo controlado, se ela até ía para casa! Mas bolas, pensava eu, preocupada já eu estou. É igual preocupar-me em Lisboa ou preocupar-me em Coimbra. Bom, a correria foi tanta que vim de chinelos. Vermelhos, dos chineses, um euro e meio. E depois ela morreu e eu não tinha mais sapatos. Morreu-me nas mãos e eu de chinelos vermelhos, dos chineses, um euro e meio. Velei-a de chinelos vermelhos, dos chineses, um euro e meio. Ía enterra-la de chinelos vermelhos, dos chineses, um euro e meio, mas depois as pessoas ofenderam-se muito e tive que pedir emprestadas umas sandálias pretas à minha tia. Foi uma sorte, é raro encontrar pessoas com o pé do tamanho do meu. Mas encontrei e as pessoas ficaram muito mais descansadas. O alívio foi tão grande que a minha tia até me queria oferecer as sandálias, que me ficavam tão bem. Fiquei a pensar que se não as tivesse calçado o mais certo era não a enterrarem, tal era a ofensa.
As pessoas encolhiam os ombros e diziam-me "a vida é assim", e apetecia-me responder-lhes que não, que a vida não é nada assim. Que a vida é outra coisa, não sei bem o quê, mas que assim é que não é. "A morte é que é assim", queria dizer-lhes, mas as pessoas só ficam para dar beijinhos a mim, ao meu pai e ao meu irmão, a mim, ao meu pai e ao meu irmão, a mim, ao meu pai e ao meu irmão, beijinhos, beijinhos, a mim, ao meu pai e ao meu irmão, beijinhos, e não há tempo para explicar seja o que for, porque a seguir a mim vem o meu pai e o meu irmão, e há muita gente na fila para dar beijinhos a mim, ao meu pai e ao meu irmão. E depois também há aquela coisa que já vos falei, que as pessoas se ofendem muito.
Não condeno as pessoas. Fazem-me rir. E agora, com os chineços vermelhos, dos chineses, um euro e meio, calçados continuo sem saber se O mande à merda, ou se Lhe agradeça.

20 comentários:

SUSHISTICK disse...

Porra pá, bom post! Catártico, tremendista, sem preço, sem cor. Apenas a ausência de tudo que o tudo que era antes deixa.

Bom post.

POrra. :P

andre disse...

muito bom!
os meus pêsames

Papoila disse...

Opá que merda Mia... :(
Um beijo muito muito muito grande de alguém que não conheces e não te conhece mas que não consegue passar por aqui sem te deixar um beijo e um abraço.
***

andreia disse...

mtos bjos com mto carinho
(foi dos melhores posts que li... dos melhores nao.. o melhor...)

Anónimo disse...

um beijinho de apoio Mia.

Anónimo disse...

bj de alguem q tem mt medo d um dia passar pelo mesmo.Soufi

Ana disse...

Não vou dizer que sei o que sentes, porque cada um sente-o à sua maneira...mas, posso dizer que compreendo.
Passei pelo mesmo há muitos anos atrás e não há um dia que passe que não me faça pensar que foi ontem..
Não esquecemos, não dói menos, apenas nos habituamos e seguimos em frente!

Beijo e um xi apertado!

andrellv disse...

Um abraço.

Anette disse...

Um texto fabuloso sobre uma verdade tão triste. Força Mia não largues esses chinelos e compra mais. De outras cores. Muitas cores.

Margarida disse...

já te leio há mt tempo, mas acho que nunca comentei. hoje teve de ser, sem saber ao certo o que dizer, quando tudo já foi dito. deixo-te um beijinho cheio de força e coragem.

abraço*

MissGarfield disse...

Uma mulher que tinha acabado de perder um filho estava a ser consolada por um Reverendo, quando lhe perguntou: "onde raio estava o seu Deus quando o meu filho morreu?" e ele respondeu "estava exactamente no mesmo sítio que estava quando o filho D'Ele morreu".

Deus está sempre lá. E conhece a dor melhor que ninguém.

gralha disse...

Não há palavras certas neste momento. Espero que possas encontrar algum sentido e que as boas memórias prevaleçam sobre o absurdo que é sempre a perda de uma Mãe.

Anónimo disse...

Mia, és Grande..


"... E de novo acredito que nada do que é importante se perde verdadeiramente. Apenas nos iludimos, julgando ser donos das coisas, dos instantes e dos outros. Comigo caminham todos os mortos que amei, todos os amigos que se afastaram, todos os dias felizes que se apagaram. Não perdi nada, apenas a ilusão de que tudo podia ser meu para sempre."

Miguel Sousa Tavares

Anónimo disse...

Dizer que o post é MUITO BOM, já foi dito!
Dizer que está muito bem escrito, também já foi dito!
Dizer para teres Força neste momento, já seria banal!

A verdade é que já não há muitas palavras para comentar e elogiar a tua coragem com as palavras que escreveste.
De qualquer maneira quero deixar a minha marca neste Fantástico Post.

Um beijinho grande.

100 remos disse...

Eu sei...infelizmente.

PrimaNocte disse...

Fenomenal Post.

Um abraco.

Anónimo disse...

Manda-o à merda! Três vezes.

Anónimo disse...

*engulo em seco*bom texto!

micose_ou_mifrita disse...

Fiquei sem palavras.

Manda-o à merda se isso te fizer sentir melhor!! Ele percebe e desculpa.

Rezo pela tua Mãe, e por ti...

Louca por Doces disse...

Fiquei sem palavras...Consegui visualizar perfeitamente esta página do livro da tua vida (ou da sua vida se preferir).
Agora é continuar a viver, voltar a página mas sem esquecer o que ficou para trás.